A imagem ao acima é considerada a primeira selfie da história, tirada em novembro de 1839 Robert Cornelius, que aperfeiçoou a técnica de captação de imagens com a câmera obscura (daguerreótipo) inventada 4 anos antes. Atualmente, a tecnologia tornou acessível (e viciante) uma das mais antigas e significativas buscas do ser humano, produzir uma auto-imagem. A possibilidade de enxergar-se fora de si, ver a imagem vista pelo outro e nunca (exceto perante o espelho) por nós mesmos, flagrar-se existindo concretamente no mundo e não apenas a partir da subjetividade (além da vaidade de exibirmo-nos) é tão relevante e universal na existência humana que encontra referência em várias mitologias, na imagem do espanto causado pelo reflexo da própria imagem, caso de Narciso, que morre afogado ao ver sua imagem espelhada num lago. Assim, tirar uma selfie não é novidade nem de longe.
O pesquisador britânico James Hall publicou sua sua pesquisa com autorretratos (ele se recusa a usar o termo selfie justamente para mostrar que a ação contemporânea se inscreve na história de forma continuada, não configurando nenhuma novidade) ao longo da história no livro The Self-Portrait: A Cultural History (ainda sem tradução no Brasil). Segundo sua pesquisa, o Renascimento marcou o início da popularização do autorretrato, embora haja vários exemplos medievais e na antiguidade clássica da prática. A dificuldade de ter-se como modelo, no entanto, tornava o desafio muito mais complexo para o pintor. Com o advento do daguerreótipo, posteriormente da fotografia, a prática virou quase obrigatória para os artistas e donos desse tipo de equipamento. Hall aponta que a reprodução de autoimagens na Idade Média poderia ter mais um caráter espiritual, de oração, para aproximar o artista de Deus, que vaidoso. Selecionamos, a partir da publicação de algumas imagens do livro, os selfies medievais e Renascentistas.
1. São Dunstan
São Dunstan (909-988) foi abade de Glastonbury e, depois, arcebispo de Canterbury. Enquanto esteve em Glastonbury produziu uma gramática latina com algumas ilustrações. Na capa, desenhou um gigantesca figura de Cristo ao pé da qual fez seu autorretrato prostrado, acrescentando uma breve oração: “Eu peço, misericordioso Cristo, que você possa me proteger, Dunstan, e que você não deixe que as tempestades Taenerian me afoguem. ” Note a preocupação em gravar o próprio nome na oração.
2. Hildebertus
A imagem acima é engraçada, poderíamos dizer se tratar de uma trolada medieval, por estar presente em uma obra clássica, clerical, ilustrando uma cena cotidiana que nada tem a ver como conteúdo do livro. Em 1136, o pintor checo leigo Hildebertus acrescentou esta imagem a uma cópia da obra de Santo Agostinho “Cidade de Deus”. O artista aparece segurando uma esponja (com o nome acima deixando claro quem era), prestes a jogá-la num rato que está andando por uma mesa de jantar. O livro aberto ao lado dele está dizendo: “Maldito seja você, rato miserável Muitas vezes me exasperante assim!” Abaixo, você pode encontrar seu jovem assistente Everwinus trabalhando na caligrafia.
3. Rufillus de Weissenau
A imagem acima é cheia de simbolismos interessantes. No final do século XII, o padre Rufillus de Weissenau criou sua obra Hagiografia (livro que retrata a vida dos santos)chamada Passionale. Na seção sobre São Martin ele incluiu um autorretrato como parte de uma letra ‘R’. Curiosamente, a posição em que segura os objetos de pintura (pincel,vara e pote de tinta) forma a letra F, compondo com o R FR (Frei Rufillus), numa alusão subliminar a si mesmo. No alto de sua cabeça aparece a designação explícita de seu nome FR Rufillus. A palavra latina para vermelho é Rufus (a tinta que ele usa é a vermelha).
4. Peter Parler
Para os escultores a tarefa era ainda mais complexa, mas não são poucos os exemplos de artistas dessa expressão que tenham feito um autorretrato, normalmente ostentando-o em igrejas. James Hall observa que existem cerca de 70 autorretratos esculpidos em igrejas, principalmente em regiões de língua alemã ou italiana, criados entre os séculos XII e XVI. É o caso do escultor alemão Peter Parler (c.1333-99), que fez seu próprio busto para ornar a Catedral de São Vito, em Praga. A peça, feita em arenito, data aos anos 1379-1386.
5. Taddeo di Bartolo
Em 1401 o artista Taddeo di Bartolo, de Siena, criou o retábulo ‘Assunção e Coroação da Virgem’ para a catedral de sua cidade. Especialistas apontam que ele teria se autorretratado na figura de São Tadeu, o único rosto no trabalho que está olhando diretamente para o espectador.
6. ‘Marcia’
A primeira descrição de uma artista mulher a pintar um autorretrato aparece em um manuscrito que data do ano 1402 que contém o trabalho de Giovanni Boccaccio “Famosas Mulheres que Trabalham”. A imagem mostra a artista anciã ‘Marcia’, de Roma, sentada em uma mesa e usando um espelho para ajudá-la a pintar o seu próprio retrato. Sua paleta, pincéis, tintas e objetos de produção estão todos retratados ao seu redor. A imagem é curiosa não apenas por se tratar, provavelmente da primeira selfie feita por uma mulher, mas por ser um autorretrato da artista realizando seu autorretrato, a imagem que a artista se pinta pintando não existe exceto nessa obra, ou seja é um selfie de alguém tirando um selfie (selfinception). A imagem do espelho ainda pode ser considerada autorretrato, configurando uma selfie tripla…
7. Jan van Eyck
Chegamos aos precursores do Renascimento. Jan van Eyck (1390 – 1441), que era o pintor da corte de Filipe, o Bom, duque de Borgonha, é tido como um dos mais influentes pintores flamencos de sua geração, ajudando a desenvolver a complexa técnica que permite conferir profundidade às imagens. Seu estilo viria a ser recuperado no Barroco, por conta do jogo de luz e sombra que priorizava em muitas telas, tais como a que suspeita-se ser seu autorretrato. Ela mostra a cabeça e os ombros de um homem que está olhando para nós e usando um turbante vermelho. No quadro lê-se a inscrição: “Como eu posso Jan van Eyck fazer me em 21 de outubro de 1433″ (a ausência de pontuação dificulta a leitura, mas costuma-se tomar o texto como prova de ser este seu autorretrato).
8. Leon Battista Alberti
Agora já estamos no ingresso do Renascimento e a lista de artistas fica enorme. O escritor Leon Battista Alberti (1404 – 1472) tem uma curiosidade sobre sua obra. Foi o primeiro escritor e artista plástico a redigir um texto sobre como fazer autorretratos. Reflexivo, seu livro “On pintura” discute vários aspectos da pintura de sua época, dentre os quais as técnicas que vinham sendo utilizadas para produzir retratos dos pr´óprios artistas. Ele escreve em terceira pessoa: “Ele (o artista) se esforça para tornar seus próprios traços e aparência característicos, de modo que, pela pintura ou imagem modelada, os estranhos possam reconhecê-lo refletido”. Ele criou este autorretrato de bronze em torno de 1435.
9. Israhel van Meckenem
A imagem acima é relevante por se tratar da mais antiga impressão de um autorretrato. Israhel van Meckenem foi o mais célebre mestre gravador (e o mais produtivo também) do século XV, além de ourives. O alemão foi precursor nas técnicas de gravação que viriam revolucionar a indústria da artes plásticas (permitindo a ilustração de livros em série). A gravura acima é seu autorretrato, feito em torno de 1490, ao lado de sua esposa Ida.
10. Albrecht Dürer
O artista alemão Albrecht Dürer (1471 – 1528) criou vários autorretratos, incluindo este, feito no ano de 1500. Ele acrescentou a seguinte inscrição: “Eu, Albrecht Durer de Nuremberg, pintado-me assim, com a cor imortal, no idade de 28 anos. “
Bônus:
Leonardo da Vinci
Não poderia faltar o mais prolífero renascentista da história (talvez o homem mais prolífero da história). Leonardo da Vinci fez esse famoso esboço de si mesmo. Há quem defenda a tese de que a própria Gioconda (Mona Lisa) teria sido uma forma de se autorretratar com aspecto feminino. Há tanto a ser dito sobre essa obra e mesmo sobre o próprio da Vinci que não cabe aqui mais que mostrar sua selfie:
Post feito a partir da tradução do post (http://www.medievalists.net/2015/05/06/medieval-self-portraits/) enriquecido com outras informações.
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